QUE SEJA!


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Três voos, três transportes públicos, treze horas depois, eu havia chegado lá, Buenos Aires. Quase perdi o celular pra um taxista hermano que voltou pra porta da pensão, o agradeci com uma nota de 50 pesos. Pedi uma macarronada no Trapiche, engoli um terço dela e parti à escadaria do pequeno Lopez Hostel no agradável bairro de Palermo. Grata não foi minha surpresa quando somente as 23 horas fui tentar abrir o cadeado de código da minha mala, e o bendito se recusou a aceitar o segredo correto e o incorreto, tive que recorrer ao recepcionista que cerrou o safado enquanto eu cochilava em minha cama, dominado pela dormência da perna esquerda, a dor de cabeça e o sonambulismo que me fez afeiçoado ao nome do bairro que eu estava.

Cerrado o cadeado e aberta a mala, me desprendi do ego dos meus rituais pré prova, tiques e toques na noite anterior das maratonas, tomei um advil e os milésimos de segundos que meu corpo demorou para derrubar minha cabeça no travesseiro foram suficientes para me fazer dormir feito pedra.

Acordei as 4h30 com a sirene do celular, assustado e pensando que estaria atrasado, um dos alarmes programados sempre toca 8h30, a corrida seria 7h30, pensei “fudeu, tanta correria pra nada”, mas ao pegar o aparelho estavam lá o 4, o 3 e zero no visor. Peguei o fone e coloquei no Spotify U2 aleatório, tradicional banda inspiração, tomei o café puro, duas torradas com geleia, um copo de suco e uma vitamina C efervescente, 1 banana e 1 maça na sacola, e parti trotando ao parque onde seria a largada as 7h em ponto. Encontro com a galera, aquela tensão própria e de todos no ar, tiramos a foto da turma, e partiu guarda volume. Guardo as coisas, tomo o pré prova, alongo, aqueço, banheiro descarregar a boleia, alinho no curral de largada.

Homens e mulheres uns mais silenciosos, outros mais agitados, temperatura estava uns 13 graus, uns mais faladores, uns rezam, outros tremem, fico entre eles e após me posicionar bem para hora H, fico quieto, encontro alguns amigos e desejo boa prova, boa sorte é pra quem não treinou – cada um pensa consigo, bato o pé no chão pra ver como a musculatura responde, dou tapas na coxa, me desafio em silêncio “tá chegando a hora, você consegue!”, sincronizo o GPS no relógio que deixei carregando total na noite anterior, faltam 3 minutos, cumprimento novamente 3 conhecidos, lembro de 3 pessoas, do meu filho, do Eustáquio, e da dona Juliana, meu filho por que eu sempre falo para ele pensar “eu consigo”, do Eusta por que me ajudou a chegar ali e falou “faz valer o esforço mano!”, e a Juli por que tá sempre comigo de um jeito ou de outro e falou horas antes “você vai conseguir, tá preparado!”, acabaram os 3 minutos, e a sirene tocou pontual após a contagem em espanhol. Tinha uma meta bem clara, também era claro meu cansaço pré prova, então a estratégia era dosar bem o começo, km a km, sem pressa, sem se importar com a manada dos primeiros kms, sentir a prova e me poupar ao máximo para depois dos 30 km que certamente haveria alguma dor, sofrimento. Assim fui, coordenando cada passada, respiração, concentração total, quase um nirvana mental, aproveitando a largura das ruas argentinas, o clima ameno dos pampas, agora 14 graus talvez, conseguia apreciar o verde dos parques e o céu azul sem nuvens, ventava pouco, pensava que dia perfeito, mas não me empolgava, segurava o ritmo, pace acima dos 4’/km até os 10k, as pernas estavam soltas e queriam mais, mas não me deixei iludir. Passei os 10k dentro do que imaginava, confortável, já passando por alguns aventureiros que antes dos 10 estavam ofegantes. Encontrei um amigo do Brasil na subidinha do km 12, tinha ele na minha visão desde o começo e nesse trecho havia reparado sua postura diferente e mais cabisbaixo, meu xará Thiago Barbosa, ainda ofereci ajuda e segurei o ritmo para tentar não desestimulá-lo, algumas centenas de metros depois ele ficou para trás (descobri feliz depois que ele conseguiu chegar e melhorar sua marca, 2h59!).

Parecia que seria um dia fantástico, tinha fome daqueles kms restantes, será que consigo?, pensava. Dali em diante não haveria mais refresco, pace 3’55 até os 35k era a meta, um gel a cada 5k ou a cada 20min, pegava água em todos os pontos de hidratação e o powerade também, embora tomava sempre pouca água ou energético, não abri mão de nenhum, utilizando a água principalmente para conforto térmico, molhando os pulsos e as vezes a testa e a nuca, embora use sempre a água, que estavam sempre a cada 2,5km coincidindo sempre com o momento de tomar o gel, tenho um problema com a sensação que a água deixa quando a boca ou o rosto fica molhado, então tenho sempre que pegar a barra da camiseta e seca ao redor da boca para reduzir esse incomodo, as passagens nos postos de hidratação foram excelentes, seja quando era garrafa ou copo, e a reposição assim também encaixou, sempre que era o posto que eu tomaria o gel 500 metros antes eu já retirava ele do bolso, quando eu avistava os voluntários eu já abria o gel com os dentes, metros antes eu já o engolia, para quando pegar a água já ter descido goela abaixo e diluí-lo, restando tempo ainda para jogar tanto a garrafa quanto o resíduo do gel nos cestos que ficam próximo dos staffs da prova, geralmente o pace não oscilava mais do que 5 ou 10 segundos nessas transições, concentrado em não errar nisso continue rumo a marca dos 20 km, um pouco antes dessa marca encontrei outro amigo brasileiro, Lucas Gualberto de Brasília, havíamos nos conhecido no hostel na maratona de Chicago 2017 e ano passado acompanhei o pedido de noivado dele pra namorada na chegada da BSB city – bicho doido, corre muito, mas parecia estar desacelerando um pouco. Quando encostei nele, falei que ia naquele ritmo até os 35 pelo menos, ele encostou e fomos juntos, propus a partir dos 20 cada um puxar 5km enquanto o outro descansava no vácuo como dizemos, assim seria, falei que puxaria os primeiros, e chegado nos 20 km, a perna e mecânica estavam perigosamente encaixadas, dentro de cada km oscilava a todo momento entre os 3’45 e 3’55, tendo que me segurar para voltar aos 3’50/3’55 e fechar o km acima dos 3’50, percebi o Lucas ficando um pouco, e como nós corredores falamos e já conhecemos, dei seta para direita e segui (Lucas foi bem também, fechou em 2h51!). Na marca da meia lembro de começar a sentir um incomodo na perna esquerda, a perna da dormência durante toda a semana, então lembrei que devia a todo custo dosar a força, deixando mais pro final, a maratona começava dali em diante.

Tomei no km 22,5 as 2 capsulas de sal que sempre tomo na marca da meia, um pouco antes havia cruzado o Marcelo Moura da MPR, pelas minhas contas ele estava uns 2 minutos na minha frente, senti sua vibração quando gritou fazendo gestos “vamos Thiagão!”, ele parecia muito bem, sua torcida e passada me animaram para continuar e manter a concentração. O tempo continuava o mesmo, vento frio, pouca ou nenhuma nuvem no céu azul, algumas poucas pessoas torcendo pelas largas ruas, e eu praticamente não me dava conta dos quilômetros passando sob meus pés, o visor de meu GPS é programado para zerar o LAP DISTANCE a cada km, e não para soma-lo, de modo que treinei a cabeça a não ficar somando 1, 2, 3…. 21, 22, 23…, mas sim apenas 1 km por vez, depois daquele, só mais um, e as vezes reparar alguma passagem dos 10 ou 20k se estaria dentro do tempo, mas nessa maratona especifica, só olhei duas passagens principais, 21,1k para 1h24’40 conforme o Emo pediu, e nos 30km, que estavam chegando nesse momento. Eu estava naquela avenida bem larga e comprida onde fica o monumento da cidade que vem gravado na medalha, o Obelisco, fazia alguns kms que eu corria mais ou menos próximo de uma turma de uns 5 caras, entre eles havia uma dupla que por estarem ritmados também eu queria me manter atrás deles, até então não havia reparado nacionalidade, num curto momento quando fiquei parelho a eles, percebi um sotaque nordestino dizendo “30 km em 2 horas, estamos 12 minutos abaixo do RP já”, reduzi um pouco o pace, então reparei na camisa do de branco uma bandeira brasileira, ambos de tênis nike, ladeei eles novamente, então o de laranja da dupla falou “vamô MPR”, eu respondi monossilábico, um deles me perguntou se eu estava tranquilo, ao que eu ri por dentro – não é o tipo de pergunta que se faz após o km 30, pensei – respondi que tranquilo não estava, mas treinei para aquilo, e o de laranja respondeu que era verdade, “a prova começa agora” falou para o outro e acelerou um pouco, encostei nele, estávamos a 3’50 já indo pro km 32, pegávamos um trecho de sombra e embora o corpo quisesse um pouco mais de velocidade eu disse que achava prudente segurarmos para após km35 para soltar mais, “vamos juntos” eu dizia, ele aceitou a segurada que dei e enfrentamos juntos o inicio dos trechos de subidas do elevado que vinha a frente, vi que ele estava bem e conhecendo minha possível debilidade nos trechos que viriam caso eu forçasse mais, liberei ele para arrancar quando quisesse que eu ia manter no ritmo que estava, rapidamente o corredor laranja (de longe parecia meio rosado) se distanciou de mim dizendo “daqui a pouco a gente se encontra”. Sabia que a guerra final começaria dali em diante, respirava fundo e dizia “concentração total, você vai conseguir passar dos 37k sem parar nem andar Thiago, você consegue”. Passando pelo km 35 encontrei a equipe MPR, tomei o Redbull que recebi do Fabio Rosa após pedir “abre pra mim” e arranquei, força final, tinha medo mas me sentia fantástico, ainda encontrei o corredor laranja (descobri seu nome no final, Michel Izidro, que fechou exato 1min antes de mim 2h46’43, provão!) na próxima subida após o energético que apenas dei 2 goles pequenos, após o final da subida seguinte e uns 200 metros depois ele já havia acelerado novamente e ficava cada hora mais distante, eu continuava a 3’50 e a distancia entre nós aumentava, passamos pelas cabinas de pedágio, um pequeno túnel perto do aeroporto, 38, 39, 40, pace chegando próximo de 4’/km.

Foi delicioso ver aquela placa dos 40 entre o verde daquelas praças, só mais 2 km, pensava comigo, menos de 8 minutos me separam do final de uma jornada tão sonhada e aguardada, por que não dizer sofrida também, uma ponta de dor-incomodo na perna-pé esquerdo que apaguei mentalmente desde os 21k, musculatura do core e quadríceps fritando, mas não me rendia, 41 pace 3,54, ouvia nas ruas já mais movimentadas muitos gritando “Bamos Maritá!, Bamos Maritá!”, havia uma Marita correndo logo atrás de mim, e aquela vibração para ela me contagiou também, ficava imaginando que eram pessoas gritando “Vamos Thiago, so um pouco mais, vamos!”, consegui encaixar melhor a passada, respiração, km 42 pace 3’49, muito gritos, para a Marita e para mim também, para todos e os poucos que comigo chegavam, lembro que havia um pórtico fake há uns 500 metros da chegada, passar por ele colocou o meu coração na boca, e antes do pórtico definitivo havia uma curva suave mas que não permitia enxergá-lo se não só nos últimos 200 metros. Marita me passou, e logo após uma outra corredora num split final também, a quem eu gritei “Pega la Marita” e ela pegou mesmo.

Lembro de finalmente avistar o pórtico com o timer, inacreditáveis dígitos 2 horas e 47 estavam lá a minha frente, havia decorado os 15 segundos transcorridos quando atravessei o pórtico na largada, estava garantido abaixo de 2h48, abaixo dos 2h53 nem se fala, e abaixo dos desafiadores 2h50 ao longe também, emocionado incontrolavelmente meus braços começaram a se erguer abertos, continuava correndo, braços abertos como quem agradece, como quem não acredita, não acredita inclusive que esta ali correndo ainda, já não corria mais talvez, flutuava, voava sobre os sonhos de todos aqueles quilômetros deixados ininterruptos e incorruptíveis para trás, lembro de algumas pessoas, lembro do treinador, lembro dos treinos, lembro dos desafios, giro os braços em torno da cabeça, das orelhas, acho que significava “denovo, bis!”, vou chegando ao pórtico e é como se eu estivesse sozinho ali, somente eu e todos os meus sonhos e também meus demônios, faço meu T com os braços enquanto atravesso aquele inacreditável e real portal mágico da minha ventura, dos meus desejos, anseios e pesadelos, 2 horas 47 minutos e 43 segundos, que são menos 12 minutos e 17 segundos para as 3 horas infinitas que qualquer maratonista sonha, as mesma 3 horas que levou o voo de SP até ali em Buenos Aires, até aqueles 3 minutos anteriores e àquela largada naquele mesmo ponto de chegada onde agora me ajoelhava, onde havia me lembrado daquelas 3 pessoas, a quem dedico essas 3 páginas narradas. Filho, Eusta e Juli, Buenos, gracias! Que Seja!

 

TL

 

1/OUT/2019

00H52

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